Demônios que atrapalham escritores
Escrevi esse artigo porque vejo muita gente capaz, cheia de conteúdo, corroída de dúvidas e paralisada de insegurança.
Dirijo-me em especial aos potenciais autores de não-ficção, que conhecem muito uma área mas não se acham capazes de virar autores.
Demônio é uma palavra que vem do grego daimon e significava, na Antiguidade o gênio bom ou mau que ajudava cada pessoa a cumprir o seu destino.
Foi o cristianismo que tornou o significado necessariamente ruim, e eu aqui tenho a pretensão de ajudar você a descobrir os dois lados daquilo que atormenta um escritor em potencial.
O demônio do não-sou-bom-o-suficiente
Demônios são pessoais e podem tomar muitas formas diferentes. Esse é apenas um nome genérico para uma categoria que costuma atormentar quase todo mundo que quer fazer algum trabalho criativo. O seu talvez se manifeste como não-escrevo-à-altura-de-Guimarães-Rosa ou quem-sou-eu-para-escrever-um-livro?
O que alimenta esse demônio da insegurança é o tipo de educação escolar que todos temos, que privilegia o saber superior de alguns poucos mestres e inibe a curiosidade e as descobertas dos próprios estudantes.
A academia é ainda pior para fazer crescer o não-sou-bom (ou boa) dentro dos pobres coitados que se aventuram a produzir uma dissertação ou tese.
De maneira brutal, professores fazem pesquisadores acreditar que nada do que pensem por conta própria tem algum valor se não for devidamente corroborado por dezenas de citações de acadêmicos mais velhos e melhores.
Claro que você, para sobreviver, acaba criando algum sistema de valores que justifique essa tirania. E ela tem o lado bom de implantar uma certa disciplina de pensamento e pesquisa para conter os devaneios mais delirantes.
Quando você se dispõe a escrever um livro, no entanto, precisa ir exatamente contra esse hábito de auto-degradação e encarar o demônio do não-sou-boa-o-suficiente de frente.
Um dos elementos essenciais para a publicação é a utilidade para leitores. Ou seja, você enfrenta o não-sou-bom dizendo a ele e a si mesmo que não precisa ser tão bom quanto Clarice Lispector, Sergio Buarque de Holanda ou qualquer outro ser famoso e reconhecido que admire.
Você só precisa escrever com clareza sobre algum assunto que seja útil a alguém.
Basta entrar numa livraria para comprovar o que digo: entre as poucas obras tidas como primas há literalmente milhares de outras menos conhecidas, mas igualmente disponíveis. Você com certeza consultou um bom número de livros para escrever sua tese.
Diga lá: por acaso eram todos maravilhosamente bem escritos? Você não encontrou uma obra que forneceu um baú de informações úteis numa prosa bem pouco camoniana?
Pois é. Proponha a si mesma uma prosa honesta e clara, um tema que vá auxiliar a leitora e toque em frente.
O demônio do preciso-pesquisar-mais
De certa forma, esse demoninho é parente do não-sou-bom, mas mais insidioso. Porque alguma pesquisa você precisa de fato fazer para escrever um livro de não-ficção, o problema surge apenas quando você não pára de pesquisar para começar a escrever.
Você acalma as maquinações do pesquisar-mais com o seguinte raciocínio: ninguém consegue saber tudo sobre nenhum assunto hoje em dia. Se você ficar se detendo sobre todos os artigos, sites, revistas e pronunciamentos que pipocam ao redor do globo sobre seu tema, vai coletar dados para vinte volumes, não um.
Você não precisa escrever a obra última e acabada sobre seu tema. Aliás, nesse mundo de comunicação rápida em que vivemos, quase todos os livros têm duração curta e acabam ficando desatualizados.
É melhor escrever um livro fininho agora, mas que contenha um número razoável de informações úteis, e deixar para incorporar nos próximos livros, também finos e diretos, as novidades que forem surgindo no ramo.
Nada impede que você escreva uma série inteira sobre um tema, desde que seu assunto interesse a leitores.
O demônio do ah-se-eu-tivesse-tempo-para-escrever
Iiiii, esse é terrível. Porque tempo ninguém tem para nada, seja para fazer exercício, seja para ver o pôr-do-sol, seja para estudar uma língua estrangeira. Tempo é sempre escasso quando a gente já saiu da adolescência e ainda não chegou à melhor idade, não é mesmo?
Quando a pessoa entoa o cântico do ah-se-eu-tivesse-tempo-para-escrever, em geral vejo que está presa num dilema: acha que deveria escrever um livro – porque a sua posição exige, porque ficaria bem diante dos colegas, porque os amigos cobram –, mas na verdade não se acredita capaz ou tem real interesse para tanto.
Esse demônio você combate estabelecendo uma prioridade para a sua escrita. O quanto você quer, de verdade, ter sua obra publicada?
Recomendo que avalie a quantidade de trabalho que provavelmente precisará investir no projeto. Julgue a relação entre suor e benefícios, com calma e sem sonhos de grandeza pese se é importante mesmo para você ter um livro publicado. Se for, aí arrume tempo.
Se você trocar uma hora de televisão por dia por uma hora de escrita, vai ver como seu texto cresce no computador. Se fugir do trabalho umas duas horas por semana, também consegue ir adiante.
A necessidade é a mãe da criatividade…
O demônio do vou-perguntar-para-os-amigos
Todos os demônios são terríveis, mas esse é particularmente tenebroso. Se você, atormentado por algumas dúvidas, ainda incerto sobre o rumo a seguir, resolve consultar amigos (ou colegas, professores, parentes), entra numa névoa da qual vai ser dez vezes mais difícil sair.
Cada um acha uma coisa diferente sobre livros, autores, público. As opiniões, além de variadas, são de modo geral bem pouco profissionais, ajudando em nada o autor confuso. Além disso, o fato de você se declarar disposto a escrever pode bem despertar o demônio do ah-se-eu-tivesse-tempo no amigo, que aí vai querer que você escreva a obra dele.
Faça um favor a você mesmo: não pergunte nada a ninguém. Estabeleça uma meta honesta, um prazo realista e esconda o mais possível dos outros o que você está fazendo. Mostre seu trabalho apenas quando estiver terminado, e só para quem entender muito do assunto. Ou para quem ama você de paixão e vai dar apoio incondicional sem palpites.
Ouça apenas as sugestões que achar muuuuito pertinentes e descarte o resto. Garanto a você: escrever é um ato solitário. Assuma responsabilidade por suas escolhas e não dê ouvidos a mais ninguém.
Como transformar os demônios
Conforme prometi lá no início, vou sugerir formas de aproveitar a energia dos daimons, que até podem se tornar simpáticos auxiliares com um pouco de redirecionamento.
O demônio do não-sou-bom-o-suficiente é alimentado pela insegurança mas sua fagulha inicial é a do auto-aprimoramento.
Claro que todo escritor pode melhorar o que escreve e o que pensa. Sugiro apenas que você não se concentre na forma, no texto polido e primoroso que vá impressionar pela suprema erudição, mas sim na intenção de prestar um serviço.
Quando o autor se dedica a passar, com o máximo de clareza e honestidade, uma informação que será benéfica ao leitor, cumpre sua função. Tentar se aprimorar nesse sentido, buscando o que é mais útil, mais pertinente, mais importante para o leitor é, aí sim, um trabalho que rende frutos.
A busca da forma perfeita é estéril e interminável, enquanto que a da utilidade máxima costuma produzir obras importantes e contextualizadas.
O demônio do preciso-pesquisar-mais pode levar você a passar anos lendo firulas, mas sua fagulha inicial tem o aspecto positivo de sacudir a complacência.
Se ninguém pode saber tudo sobre um assunto e se os conhecimentos mudam constantemente, é bastante prudente você não fazer declarações finais e absolutas, emitir opiniões como se tivesse a última palavra, colocar-se numa posição da qual seja difícil recuar.
pilha de livrosClaro que você deve ter uma opinião definida, mas vale sempre, quando escrever, lembrar de que tudo pode mudar, inclusive viéses científicos tidos como verdade imemorial. Os bons intelectuais sempre tomam esse cuidado, sem dúvida guiados pelo daimon que sussurra: “sabe-se lá o que vão descobrir amanhã”.
O demônio do ah-se-eu-tivesse-tempo-para-escrever apresenta o lado bom de provocar uma avaliação da necessidade do projeto. Se toda pessoa que fantasia escrever um livro de fato levasse adiante a empreitada, o mundo não teria mais árvores.
É sempre maravilhoso colocar os pés na terra antes de embarcar na escrita, porque as armadilhas da vaidade são muitas. Se o seu projeto não sobrevive a um baldinho de água fria, você vai se divertir muito mais fazendo alguma outra coisa para a qual também não tem tempo…
Até mesmo o demônio do vou-perguntar-para-os-amigos tem uma fagulha de luz, que na minha opinião é a seguinte: alguém em algum lugar do mundo sabe alguma coisa sobre isso que estou passando.
E sabe mesmo. Outros intelectuais, outros autores e professores já tiveram dúvidas semelhantes às suas e comentaram a forma como as resolveram.
Há inúmeros livros sobre escrita, especialmente em inglês e francês. Há obras interessantes sobre organização de idéias, edição de texto, clareza de raciocínio, basta procurar. Ou seja, o impulso de buscar outra pessoa não é totalmente inválido, você só precisa avaliar com cuidado a experiência de quem está consultando.
Minha sugestão permanece a de não falar com ninguém, especialmente pessoas conhecidas, mas ler. E tirar dos textos o que serve, descartando sem dó o que você sente que não se aplica ao seu momento.
Assim você permanece no seu rumo mas pode beneficiar-se de conselhos interessantes.
7 de julho de 2019 @ 18:55
Boa tarde, fiz o curso como escrever um livro. Excelente dicas. Escrevo há muitos anos, digo que aprendi a ler e escrever para dar vida aos meus poemas. Sempre paguei para editar meus livros, salvo 3 que ganharam concurso em Goiás. Quero muito ser editada por uma editora para que eu possa fazer parte de feiras de livros. Tenho dois textos (editados) o Qual o Título? (com o qual faço a oficina “Estória, leitor e cor) e o Qual a sua Poesia? (com o qual através das palavras e imaginação os participantes escrevem o seu poema). Tenho dois textos para crianças prontos,e um de poesia em que a “inspiração” é natureza do Cerrado Goiano. Posto no Instagram todos os dias um poeminha embasada numa foto. Gostaria muito de percorrer o caminho das pedras e chegar ao topo de uma editora. Obrigada
29 de julho de 2019 @ 10:57
Valéria,
vc está no caminho certo, com temas fortes e divulgação pelas redes sociais. O Instagram se tem mostrado bom para poesia, em especial bem emotiva. Sugiro ações de divulgação insistentes, como saraus com poetas na mesma linha e convite para o público participar, organização de eventos com outros autores, muita conexão com pessoas da cultura na mesma linha que vc. Divulgue-se. As editoras levam em conta quem tem plataforma, quem é considerado relevante pelo público.
5 de abril de 2022 @ 20:20
ola boa noite sou acadêmico do 8 semestre trabalho no centro cirúrgico, quero escrever um livro de experiência do c.c como tema gostaria sobre opme (órtese e prótese material especifico, do centro cirúrgico nunca escrevi nada mas queria relatar minha experiência do zero ao agi. desde ja muito obrigado
14 de novembro de 2022 @ 07:35
Olá Laura
Meu nome é Priscila e sou estudante do 1 semestre de Pedagogia na Univesp, tenho a matéria de Projetos e métodos para a produção de conhecimento. No qual a atividade é: “escrever um projeto de pesquisa, que deve corresponder ao seu gosto e ser algo que lhe proporcione uma experiência gratificante” como gosto de escrever poemas, pensei logo no tema de como escrever um livro. Sou bem leiga no assunto, mas o tema que escolhi me agrada muito, porem estou com dificuldades em achar artigos científicos. Você tem alguma dica em possa me ajudar.
Estou lendo seu conteúdo, no momento não tenho condições de fazer seu curso, mas será meu objetivo em breve.
Obrigada